Vogue World e a crise no mundo Vogue
Com um novo evento filantrópico, a marca pretende alcançar ainda mais públicos, mas o que está por trás dessa nova estratégia?
No dia 14 de setembro houve a segunda edição do evento Vogue World, da revista Vogue norte-americana, que dessa vez se uniu à sua divisão britânica para trazer as celebrações à Londres. Quando tivemos o primeiro evento do tipo em Nova York no ano passado, em meio à semana de moda, ninguém entendeu exatamente o que seria o Vogue World. A premissa era celebrar o aniversário de 130 anos da revista, mas não se sabia qual forma a comemoração tomaria. O que acabou se revelando foi um editorial de moda a céu aberto, um desfile com as principais top models caminhando na rua com looks apresentados há pouco nas passarelas, algumas celebridades como Serena Williams — que também estampava a capa da revista em setembro —, uma feira livre com produtos Vogue e de outras marcas de luxo, edições da revista de todos os lugares do mundo e uma ode à cidade de Nova York. Tudo criativamente curado pelos dedos meticulosos das equipes Vogue e, claro, ao som de “Vogue” da Madonna.
Para a edição londrina do evento, o nível de produção aumentou: o marketing foi além do digital, a publicação investiu em um editorial publicado na edição de agosto da revista, contando com Naomi Campbell, Ian McKellen, Victoria Beckham, entre outros tantos talentos britânicos. Ingressos foram postos à venda, começando em 192 libras e indo até 2.521 libras para alguns poucos pagantes, e esgotaram rapidamente. A impressão geral é que este segundo evento foi melhor idealizado pela equipe, contando até mesmo com um tapete vermelho, onde convidados britânicos, editores da Vogue, celebridades, príncipes, princesas e pagantes desfilaram looks exclusivos. No tapete vermelho havia também uma mini orquestra tocando clássicos de musicais britânicos como “I Could’ve Danced All Night” de My Fair Lady. A homenagem a Eliza Doolittle não terminou por aqui, com a modelo Lila Moss se vestindo como a personagem numa recriação da famosa cena da corrida de cavalos. Além disso, foi no Theatre Royal Drury Lane que o musical My Fair Lady estreou em 1958 com Julie Andrews no papel principal, antes de estrear nos cinemas com Audrey Hepburn como protagonista em 1964.
Quando a voz de Ian McKellen pediu para que todos tomassem seus assentos, a apresentação começou com um vídeo supostamente gravado do estilista John Galliano vestindo a top model Kate Moss em vestido de lamê dourado feito sob medida para a ocasião, até que a película branca é removida e a modelo e o estilista surgem no palco. Que melhor maneira de iniciar do que com a modelo britânica mais icônica e o estilista britânico vivo mais celebrado? Seguindo com apresentações musicais de FKA Twigs e Stormzy, modelos, atores, bailarinos e celebridades passaram pelo show dirigido por Stephen Daldry, de Billy Elliott. Ele, inclusive, encontrou uma forma bastante interessante de driblar o pequeno palco do Theatre Royal Drury Lane, fazendo com ele fosse apenas o ponto de partida da passarela, estendendo-a até o público, permitindo que os numerosos artistas no palco tivessem mais espaço para expor sua arte. O espetáculo durou pouco mais de 40 minutos e encerrou-se com as angelicais super modelos, Christy, Cindy, Linda e Naomi — que dispensam sobrenomes — ao som de “There Must Be an Angel (Playing With My Heart)” com a poderosa Annie Lennox nos vocais. Uma homenagem ainda mais apropriada, talvez, seria termos “Freedom ’90” de George Michael, canção que consolidou as super modelos em seu vídeo-clipe. Apesar de não serem todas britânicas, foi na capa da British Vogue que elas foram lançadas ao estrelato pelas lentes de Peter Lindbergh no início dos anos 90.
Que este Vogue World foi maior (e melhor!) é quase unanimidade. Para além de uma celebração da revista, Anna Wintour quis fazer deste evento uma celebração das artes britânicas, que estão sob ameaça após de o parlamento inglês anunciar cortes de verbas para manter as artes. Wintour fez deste um evento com forte viés político, além de midiático e filantrópico, com toda a renda sendo revertida em doações para teatros em crise no Reino Unido. A moda é política, e Annie Lennox também fez seu protesto cantando “Sweet Dreams (Are Made of This)” em uma jaqueta de Richard Quinn incrustada com os dizeres “God Save the World”, ao invés do clássico “God Save the Queen”. Desde a morte da rainha Elizabeth II, o novo monarca Rei Charles III não tem sido bem recebido pela mídia britânica, com decisões políticas controversas.
A filantropia, no entanto, vem de duas formas. A marca Vogue também se beneficia imensamente com o evento, principalmente frente à crise que o título passa nos últimos anos, tendo demitido consagrados editores de moda, extinguindo quase imediatamente o título de editor-chefe, e colocando no lugar diretores de redação com maior presença on-line, numa tentativa de manter o público internauta interessado no título. O único editor-chefe que havia permanecido fora Edward Enninful, primeiro homem negro a ocupar tal posição, na direção da Vogue britânica, fazendo história com suas capas representativas, marcantes e editoriais inesquecíveis, trazendo o brilho de volta à marca Vogue. Em Junho, no entanto, essa realidade foi chacoalhada quando anunciaram sua partida dos títulos Vogue que comandava (além da britânica, ele também supervisionava as edições europeias, que compreendem França, Itália, Espanha e Alemanha), enquanto muitos acreditavam que ele estava sendo preparado para assumir o cargo de Anna Wintour, antiga editora-chefe da Vogue norte-americana, hoje chefe de conteúdo da editora Condé Nast e diretora editorial global da Vogue. No entanto, foi anunciado esta semana que a sucessora de Enninful será Chioma Nnadi, mulher negra com raízes nigerianas, atual editora do Vogue.com e queridinha de Wintour, com o editor assumindo outro cargo global ainda não divulgado.
A nova diretora de conteúdo da British Vogue, Chioma Nnadi. Foto: Evelyn Freja / The Guardian.
Outros sinais dessa crise editorial é a entrega da lendária sede da publicação em Londres, a Vogue House, depois de 65 anos no local, anunciada em janeiro. A justificativa é que o espaço antiquado era difícil de se lidar, fazer readequações e expandir de acordo com as necessidades do título. A previsão de mudança é até janeiro de 2024. Uma mudança similar, entretanto, foi realizada pela Vogue estadunidense em 2015, quando eles deixaram sua pequena sede na Times Square pelo novíssimo One Trade Center, alegando também a necessidade de um escritório maior que comportasse as mudanças do mercado editorial. Mais um sinal da crise interna é a capa conjunta de setembro com as super models, uma dobradinha entre a Vogue americana e Vogue britânica. Uma decisão que não foi vista com bons olhos pela mídia, por conta das fotos que pesam no uso do Photoshop. Se tratando de mulheres com mais de 50 anos, a intenção era celebrar suas vidas e idades, e não tentar apagar suas rugas. Apesar de capas conjuntas já não serem mais grande novidade graças à parceria feita em capas com Lady Gaga, Adele e Rosalía, a união hoje tem sido vista como uma tentativa de corte de custos, principalmente quando envolvem-se as versões americanas e britânicas, as duas maiores, em suas edições de setembro, as maiores do ano.
Mais um movimento controverso da editora Condé Nast com os títulos Vogue foi condensar editoriais cada vez mais, com as últimas edições de junho/julho deste ano apresentando essencialmente os mesmos editoriais de moda em grande parte das edições de cada país, como Estados Unidos, Reino Unido, França, Espanha e Itália. A estratégia foi vendida como uma “edição de verão”, mas o que os leitores — que, muitas vezes, compram as edições de cada país com a intenção de ver o que é apresentado na moda daquele canto do mundo —receberam foi uma versão homogeneizada do que é a moda mundial. Esse é um movimento perigoso, pois a intenção de se ter uma versão da revista Vogue para cada país é justamente para que ela reflita aquela cultura. Se começarmos a apostar em uma edição global do título, a moda regional acaba sendo muito menos vista, e, consequentemente, não será lembrada e será apagada.
Com isso, a Vogue tem muito a se beneficiar de um evento que conta com os atores das séries britânicas do momento, Heartstopper, Sex Education e Bridgerton, gerando muito buzz nas redes sociais. Uma parceria inédita com o eBay trouxe a cantora Rita Ora, a primeira top model Twiggy e o TikToker Wisdom Kaye em looks garimpados da plataforma de vendas de segunda mão, incentivando, assim, a compra de produtos usados, algo que o título começou a fazer há pouco tempo. E o que a Vogue apoia, vira moda. Até mesmo os fotógrafos de street style Acielle e Darrell Hunter foram chamados para fazer a cobertura de moda dos convidados e pagantes, gerando assim ainda mais interesse pelo evento. Uma série de posts em seu website foi feito, com a intenção de gerar interesse no grande público que ainda não entendeu do que se trata o Vogue World.
O after-party recebeu patrocínio da grife franco-italiana Moncler e contou com os convidados do evento e outras celebridades, como Leo DiCaprio, aparentemente tentando se esconder a todo custo. Até mesmo brasileiros queridinhos da publicação estiveram presentes, como o fotógrafo Rafael Pavarotti, a modelo Carol Trentini e a responsável pelas parcerias de moda do Instagram Larissa Gargaro.
O diretor de cinema Baz Luhrmann, Anna Wintour e Edward Enninful no Vogue World. Foto: Vianney Le Caer / Invision / Associated Press.
Na mídia de moda o evento foi pouco comentado, se tratando de um produto proprietário da marca Vogue, o que pode ser visto como algo positivo, já que as mídias sociais do título se tornam o principal portal de notícias para o evento. A crítica especializada britânica até mesmo comparou esta celebração com o já tradicional MET Gala de Nova York, chamando Vogue World de resposta britânica do baile beneficente norte-americano. A comparação é minimamente justa, visto que o objetivo do evento foi cumprido: a arrecadação entre convidados e empresas foi de mais de 2 milhões de libras, e os principais beneficiados são as artes britânicas. Mas a Vogue não está tentando fazer um concorrente do MET Gala, pelo contrário, o Vogue World é, na verdade, mais uma tentativa da marca manter sua relevância durante o ano inteiro, com um grande evento midiático no primeiro semestre e outro no segundo semestre. Enquanto o MET Gala fecha o ano no hemisfério norte, em maio, o Vogue World vem abrir o ano da moda, em setembro. Acredita-se também que o World do nome signifique uma celebração itinerante, visando exaltar o que cada cidade possui de melhor, e ainda prestando serviço a ela. Se seguirmos a lógica, ano que vem teremos um evento em Milão, e depois Paris? Não sabemos decerto. De qualquer forma, agora os internautas possuem mais um evento para comentar os looks das celebridades, que também recebem muita atenção, além dos designers que ganham mais uma oportunidade de exposição de suas criações mais extravagantes de alta-costura que tem ganhado cada vez mais notoriedade. E, claro, sempre com o nome da Vogue na ponta da língua e no topo da cabeça, diferentemente do MET Gala.
Vogue está aprendendo com seus erros e corre contra o tempo para trazer relevância à marca de mais de 130 anos de existência. Uma tarefa árdua para sua editora de quase 74 anos, que ocupa seu cargo no topo do mundo da moda há mais de 35 anos, e que também batalha contra os críticos da internet e tenta consistentemente entregar um produto que as pessoas ainda tenham interesse em um novo mundo em que as informações são excessivas, porém escassas de real conteúdo. Para Anna Wintour, em seus muitos anos de carreira, este deve ser apenas mais um momento de crise, como já houve muitos. Afinal, o mundo dela é a Vogue, e, hoje, ela tenta apresentar este mundo a nós.