Crítica SPFW: João Pimenta - O novo medieval
Sintetizando o catolicismo da idade média e o candomblé dos dias atuais, o estilista borra as linhas entre as religiões e conceitos de gênero
Nesta edição de número 56 do São Paulo Fashion Week, maior evento de moda da América Latina, o estilista mineiro João Pimenta apresentou uma suntuosa coleção de moda masculina que quebra padrões de gênero e suscita questionamentos relevantes para a nossa sociedade atual. O autor italiano Roberto Vacca publicou em 1971 o livro “A Próxima Idade Média”, obra que acabou ganhando status cult com o decorrer dos anos. Nela, Vacca defende que estaríamos entrando em um período similar ao que já tivemos no passado, onde tivemos um acesso mais rápido à informação, mas que, ainda assim, a desinformação reinava. Descobertas científicas eram muitas, mas cada vez mais pessoas se tornavam enfermas. Cidades cresciam em uma velocidade impressionante, apenas para anunciar o seu colapso iminente. O italiano acabou não acertando precisamente que o universo da computação iria dominar o mundo nos anos seguintes, algo que ele retificou em novas edições revistas. A mensagem, no entanto, estava lá: não estamos nos desenvolvendo como deveríamos, ainda há impeditivos.
É nesse impeditivo que a coleção de João Pimenta entra, trazendo uma conversa sutil sobre o sincretismo religioso: conceito que compreende que algumas religiões acabam se interligando, e que o caminho para algo superior é apenas um. A temática é contemporânea e parece estar longe de se tornar datada. Apresentando trajes reminiscentes do período barroco e nos levando a uma viagem através dos looks que nos compreender que a linha entre o medieval, a idade média e os dias de hoje são cada vez mais tênues. Também é muito borrada a linha entre o religioso cristão europeu e o religioso africano.
O desfile abre ao som de “Mad Rush”, de Steffen Schleiermacher, compositor erudito alemão contemporâneo que traz um twist moderno para suas obras clássicas, que soam como composições medievais. É com esse clima que percebemos que o barroco será uma das inspirações para esta coleção, com túnicas douradas bordadas com paetês e até mesmo aplicações de molduras em madeira. O dourado, entretanto, possui uma tonalidade esverdeada, que vai se dourando mais com o passar dos modelos. Laços já fazem parte do visual de João Pimenta, que os adorna em pescoços e cinturas, marcando-as. Outro código do estilista são as mangas bufantes, e aqui elas estão mais bouffant do que nunca, pretas, douradas e transparentes, inclusive acompanhando um short curto balonê! Nos pés sandálias de cordas que amarram nos tornozelos ajudam a recriar a moda medieval, unindo trajes que poderiam ser de uma realeza com as sandálias dos plebeus. O clero também é referenciado em grandes colares de contas largas, como os de padres franciscanos.
A linha entre o masculino e feminino é algo que João Pimenta costuma gostar de brincar, contudo desta vez ele o traz para a temática, adotando as saias com grandes anáguas, albornozes e saiotes de diferentes cortes. Há ainda as saias que, olhando de frente, nem parecem saias, mas ao virar, a peça revela ter cortes em sobreposição de pelo menos três camadas. Essa sobreposição nos cortes também se repete em jaquetas e sobretudos, que apresentam cortes na frente, deixando à mostra barrigas através de camisas de renda, ou atrás. As calças ora retas, ora bufantes terminam nos tornozelos ou se arrastam pela passarela, algumas ainda com fendas laterais triangulares também com sobreposição de tecidos ou com cortes de linhas orgânicas, conferindo modernismo às peças. Destaque para o terno-saia com anágua, conferindo um visual oversized ao extremo, nos lembrando até mesmo de uma recente coleção de Thom Browne na New York Fashion Week.
Entre dourados e pretos, temos uma pausa repentina e uma música com tambores e palmas, tradicional de terreiros de umbanda e candomblé se inicia. “Vou fiar fios de terra e ouro”, o canto diz, nada mais adequado. Todavia Pimenta quebra expectativas, trazendo na sequência modelos vestidos exclusivamente de branco e dourado. É nesse momento que fica claro o paralelo que o estilista quis construir para esta coleção: a religiosidade trazida da Europa não fica muito longe daquela vinda de África. Ao transpor os looks de pretos para brancos, mantendo os dourados, as rendas, as transparências e os bufantes, entendemos que África e Europa são muito mais parecidas do que imaginamos. A cantiga ainda menciona Oxum, orixá que é rainha da água doce, dos rios e cachoeiras, vista como deusa do ouro. Nesta segunda parte os cortes de camisas e ternos se revelam mais japonistas, as rendas bufantes através de saias com anáguas parecem remeter mais às tradicionais baianas. Bolsas ainda marcam cinturas, assim como enormes laços, as calças seguem em estrutura mega oversized.
Unindo o sacro europeu ao sacro africano, João Pimenta desmistifica e exemplifica através da moda como as duas matrizes religiosas são mais similares do que jamais as demos crédito. Mestre em fazer roupas que contam histórias, com início, meio e fim, verdadeiramente teatrais, no melhor sentido da palavra, o estilista também é mestre em fazer peças vestíveis. Porém, claro, não sem romper com dogmas. Propõe ainda a reflexão sobre a atual idade média na qual vivemos e nem sequer nos damos conta. João Pimenta segue genial, porém nada ortodoxo!