Como o mercado de trabalho está mexendo com a nossa saúde mental...
e porquê estamos deixando isso acontecer.
Eu não sei vocês, mas eu posso falar por mim. Dos 16 aos 26 anos eu trabalhei para os outros, e nesses dez anos, são poucas memórias positivas e muitas memórias traumáticas. De um estoque de roupas do pai de uma amiga no qual eu carregava sacos de roupa de mais de 20 quilos nas costas diariamente por dois lances de escada, passando pela secretaria de um médico reumatologista e acupunturista que fraudava guias médicas para poder fazer seus 300 mil reais mensais e me humilhar na frente dos pacientes, até uma padaria/restaurante/mercadinho que me contratou para ser um faz-tudo que atua no café da manhã, lava louças na cozinha, faz doces na confeitaria, atende no balcão da padaria, serve mesas do restaurante, e ainda limpa os banheiros, tudo com um sorriso no rosto. Isso sem falar na escola que me contratou para ser assistente de dois coordenadores de línguas e, em poucos meses, a máscara de um deles cai diante de você e a culpa ainda acaba sendo sua pela demissão tardia do profissional.
Sério, no mercado de trabalho eu já vi de tudo e já passei de tudo. Eu sei que muitos de vocês também. A questão é: por que ainda estamos nos sujeitando a estes tipos de trabalho?
No último lugar que trabalhei, uma escola renomadíssima, um processo em especial mexia muito com a mente das pessoas que estavam lá dentro: a promoção. Enquanto em alguns lugares as promoções são conferidas através do mérito do profissional dentro da instituição, ou seja, uma pessoa agregando valor à empresa através de seu trabalho, nesta escola o processo era muito diferente. Parecia randômico. Vou explicar.
Um processo seletivo interno era aberto, mas a escola também postava as vagas disponíveis regularmente em seu site oficial e em sua conta do LinkedIn. Até aí, tudo bem. A prioridade, supostamente, quando se abria vagas, era para os professores que já estavam na instituição, promovendo alguém que já conhece os processos da escola e teria maior facilidade de lidar com as mudanças. Uma pessoa de fora teria maior dificuldade de conseguir assimilar toda a metodologia da escola, por isso essa opção era deixada como plano B. Supostamente.
Assim que o processo seletivo interno era aberto, uma comoção absurda era gerada. Os professores e professoras corriam para enviar suas inscrições para poderem concorrer à vaga. Algumas vezes era necessário criar um portfólio de atividades feitas na escola para provar o seu valor. Muitas pessoas não tinham este portfólio feito, idealizado ou até mesmo esquematizado mentalmente e corriam contra o tempo para entregar algo apresentável, que vendesse seu peixe, e ainda, lidar com toda a pressão que a escola já colocava com o trabalho diário. Ou seja, a saúde mental ia para o saco. O que se via nas semanas seguintes ao anúncio da vaga era um furor gigantesco. Às vezes eram duas vagas de promoção que abriam, às vezes uma, às vezes era somente uma reserva. Com isso, todos os assuntos que giravam em torno da escola eram acerca da vaga, da promoção, do salário melhor, das melhores condições de trabalho, quem estava participando no processo, quem eram os concorrentes e quantos, havia aberto o processo seletivo via LinkedIn também?
O processo durava de uma semana até seis meses. Durante a seletiva, os professores estavam sendo constantemente avaliados, além de terem que apresentar uma aula demonstrativa para exemplificar como seriam suas aulas caso recebessem a promoção. A aula-exemplo era dada para uma turma acima das que os candidatos estavam acostumados a ensinar. Só aí já temos um grande problema: essas pessoas não eram observadas antes? Como uma escola (tão renomada!) Nem sequer sabia se professor fulano ou ciclano era mais qualificado que outro para subir de cargo? Isso não faz sentido pra mim. Como uma empresa trabalha sem saber da qualidade de seus funcionários?
Durante esse, por muitas vezes, longo e árduo processo seletivo interno, muitas pessoas desistiam. Muitas pessoas jogavam a toalha acreditando não serem capazes o bastante para ocupar aquele cargo. “Porque a fulana faz tal coisa e eu não faço, logo eu não sou capacitada. Não mereço este cargo”. A comparação com o trabalho alheio era uma grande constante. Individualidades não eram levadas em consideração, e muito menos o tempo de aprendizado de cada um, afinal, ninguém nasce sabendo.
O que mais me chocava em toda essa história era o final do processo. Inúmeras vezes a pessoa menos qualificada era a escolhida. A pessoa que não tinha senso de organização, não tinha tato para lidar com o sócio-emocional de crianças em formação, não sabiam escrever ou até falar bem para terem uma boa comunicação com os pais da classe alta, não possuíam estabilidade emocional em si próprias e que, ainda por cima, espalhavam mentiras e fofocas dentro da instituição. Essas eram as pessoas que alçavam na bem-dita escola. Isso quando todo o estresse, horas, dias, semanas e meses de dedicação dos professores a esse processo eram simplesmente jogados no lixo. Porquê? A escola decidiu não promover ninguém, optaram por encontrar alguém fora da instituição, deixando a impressão de que ninguém ali estava remotamente preparado para o cargo.
Em dois anos de escola eu não vi isso acontecer apenas uma vez, mas dezenas de vezes. Eu mesmo fui vítima disso três vezes enquanto estava lá. E, a cada vez que eu não passava, eu queria trabalhar mais e mostrar mais o meu trabalho, afinal, nunca fui do tipo que faz fofoca aos quatro cantos, muito menos o que espalha mentiras sobre os outros, logo, mostrar meu trabalho bem feito era a minha única opção. Não foi o bastante, óbvio, já que a meritocracia não era o método aplicado à seleção. Deixei a aclamadíssima instituição que se importa muito com o bem estar de seus funcionários depois de dois anos de uma pressão psicológica absurda, com o emocional extremamente abalado e chateado comigo mesmo por não ter feito mais. Ao sair, a sensação de que me ficou é: eu não sou capaz. Eu não sou capaz. De nada. Não sei nada sobre nada.
Mesmo após ter me envolvido em todos os aspectos da escola, nada era o bastante para eles. Eu precisava ter mais tempo em sala, eu me envolvia com isso. Eles pediam que eu fizesse um curso para desenvolver um projeto, eu fazia. Eles precisavam de uma substituição por que uma professora ia faltar por duas semanas, lá estava eu, substituindo. Minha parceira ia passar por uma operação e eu teria de ficar sozinho por um tempo com 500 crianças por semana, sem problemas, eu consigo. Sempre lidando com tudo da melhor forma, de todos os processos, e com um sorriso no rosto. Legitimamente feliz por estar ali. Até não estar mais. Até entender que quaisquer esforços que fossem feitos, jamais, nunca seriam o bastante para eles.
Depois que eu deixei a escola e decidi voltar ao meu próprio negócio, um pouco a contragosto por conta das minhas inseguranças recém-plantadas, ouvi histórias absurdas de quem estava lá dentro. Eu não fora promovido, escolheram uma garota no meu lugar. Surpreendente? Não muito. Um homem gay ou uma mulher hétero branca? A escolha é clara. Minha parceira estava sozinha pela primeira vez em dois anos, tendo que lidar com tudo sozinha. Em pouco tempo ela também deixou a escola. A professora promovida no meu lugar raspou a cabeça em surto pouco tempo depois de assumir a promoção. Uma amiga teve um surto psicótico seríssimo, outra teve burnout, outra se afundou em uma depressão e foi afastada por motivos médicos, muitos saíram antes, junto, e depois de mim, todos alegando ineficiência da escola. Logo eu pude ver. Eu sou o problema? Eu era o menor dos problemas. O buraco é bem, bem mais embaixo.
Com isso, quero dizer: não há empresa renomada que cuide da sua saúde mental, por mais que eles digam isso constantemente em uma tentativa de tornar a mentira contada mil vezes uma verdade. Não há chefe que vá querer o seu bem tanto quanto você quer o seu bem. Não há promoção, cargo, posição que valha o seu bem-estar físico e mental. Não há bom salário que pague pelos anos de terapia que você terá que arcar partindo disso. Simplesmente não coloque um valor, uma quantia, um limite, um cargo ou um status na frente da sua saúde mental. Se quiser trabalhar muito, faça por você. Empreenda. Trabalhe horas extras na sua empresa. Invista em seu conhecimento pessoal. É clichê, mas ninguém te tira. Em tempos de conversas acerca de relacionamentos tóxicos, este definitivamente ainda não é falado o bastante.